1º texto

 

Desde pequena me acostumei aos prazeres solitários. À leitura, à escrita, ao desenho e à imaginação como forma de brincar. A comunicação com o mundo parecia além das minhas capacidades, já que meus pensamentos sempre pareciam embaçados e confusos demais para serem  exteriorizados. Era um desentendimento constante comigo mesma. Como podia ser fácil, então, o desentendimento com o outro, que também é uma multiplicação de seus próprios desentendimentos.


Isso me punha em um estado de nervos, causado pela possibilidade iminente de ver a ausência que havia em mim presente em outro e, talvez, a ausência do que havia no outro manifesta em mim mesma. Vem do turbilhão de probabilidades inventadas que vão se conectando umas às outras naqueles momentos em que o nosso olhar vidra e a cabeça flutua separada do corpo. É um medo completamente fundado na ficção e que, como ela, também
deveria ser irreal; mas ele cresce tanto que passa a existir e inclusive se torna físico. A língua congelada é um dos sintomas mais frequentes de quem sofre ataques constantes desse medo, é sempre bom ficar atento quando isso acontecer para que o congelamento não se espalhe para outras partes do corpo, pode ser perigoso.


Todos os dias morro no mínimo três vezes por antecipação.

 

 

Federico

 

Saiu do trabalho cansado e encontrou sua bicicleta com o pneu furado. Depois de servir 113 bolas do melhor sorvete da cidade, durante meia manhã e uma tarde inteira, ter que voltar para casa a pé era a cereja em cima do sorvete que todo mundo tomou e ele não. Caminhou com a bicicleta ao seu lado na avenida que começava a ficar movimentada. Como podia uma capital ser tão silenciosa? Parecia que não sentia o trânsito, a chuva, talvez nem mesmo um incêndio na prefeitura fosse suficiente para tirar a estaticidade e seriedade que ela aparentava ter. Até que era bem ajeitadinha,  calçadas regulares, faixas de pedestre bem pintadas, quatro conjuntos de semáforos e uma lixeira a cada 500 metros. Pena que nada daquilo fazia a mínima diferença  na vontade que ele não tinha de passar tempo suficiente ali para perceber essas características.  

Chegando em casa naquela noite se rendeu a todos os seus vícios: fumou os três últimos cigarros que tinha na carteira (só não mais porque teria que sair para comprar e à caminhadas noturnas ele era alérgico), comeu tudo que tinha no armário da cozinha - ou meio pacote de amendoim e duas balas de menta -, arrancou todas as folhas do galho de limoeiro da vizinha que pendia pro lado de cá do muro, juntou e guardou todas num pote de sorvete para fazer chá porque se sentiu culpado, ligou para ex namorada, ela não atendeu. Era tão fácil esquecer de todas as promessas que tinha feito a si mesmo quando se levantou pela manhã, sem ânimo mas com a esperança de uma turma de terceira série tendo uma aula sobre reciclagem.

 

Começou a correr mas só conseguia mexer normalmente seu braços, que pareciam estranhamente rápidos em comparação com as pernas que se mexiam em câmera lenta. Que sensação angustiante! Virou a esquerda e duas vezes a direita, corria no meio da rua de paralelepípedos para vez em outra quase cair em algum mais frouxo. Sabia que a qualquer momento viria um carro vermelho em sua direção mas como suas pernas estavam lentas não ia conseguir desviar e, provavelmente, iria confundir-se com o veículo: móvel-imóvel e vermelho. Mas o que era pior: a morte ou uma mordida de chihuahua com pouco mais de 20 cm estraçalhando suas canelas? Realmente é uma questão custosa aos olhos de quem tem o mau hábito de transformar qualquer pequeno problema em uma boa desculpa para nunca mais sair de casa.

 

 

 

 

 

 

 

Dia 02

 

Realmente passou dos limites - emocionais - na noite anterior, depois de uma noite turbulenta sonhando com a espera da própria morte, a única medida que ele poderia tomar era aquela.

-Uma média?

-Sim.

-Com leite?

-Sem leite.

-Puro?

-Isso.

-Expresso ou passado?

-...Expresso.

Bebeu aquela água suja com 8 colheres de açúcar, e ainda amarga!, e com uma vontade enorme de prender a respiração do nariz com os dedos. Mas achou que seria vergonhoso fazer esse gesto, não queria parecer mais infantil do que já estava se sentindo. Bebeu em três goles e voltou a andar até os pés encontrarem a já conhecida avenida.

Sabe-se lá até quando a mandrice de sair de casa e ir até a borracharia seria maior que o incômodo de usar só os pés para o trabalho todos os dias. Olhava os carros, as pessoas, os pedaços de concreto e de verde, até cansar e manter os olhos fixos a sua frente e olhar só para dentro de si.

Chegou no trabalho, no banheiro e sentou na privada com a tampa abaixada e porta aberta. Seus pensamentos já estavam fora do seu controle a tempos, ali sentiu como se uma cidade inteira começasse a se formar dentro da sua cabeça, estava cheia! Percebia os carros passarem em movimentos tão abruptos que sua cabeça não conseguia não ser levada junto a cada corrida. E gente andando, aqueles milhares de pezinhos em movimentos muito rápidos, todos se mexendo o tempo todo, ele podia sentí-las caindo por seus ouvidos, fugindo. Não achava saída ou caminho qualquer e tinha vontade de reclamar em grita para fugir daquele lugar detestável. Seu colega, percebendo o estado alucinatório que o amigo não tinha jeito de esconder, agitou seu braço com força e a metrópole que viveu em sua cabeça se apagou.  Federico botou os pés no chão.

 

Por isso ele não fazia mais essas coisas. O deixava ansioso, como se toda a energia que vai para a região do peito se ocupasse de bombear o coração e não desse conta de levar ar para o pulmão. Se sentiu infantil mais uma vez, café é a bebida não alcoólica favorita dos adultos, seus pais tomavam um cafezinho até antes de dormir. Tinha vislumbres involuntários da passada ou imaginada infância enquanto fumava seu cigarro matinal, para ver se pelo menos os músculos relaxavam.

Acho que não é totalmente possível morar em uma metrópole sem a manutenção de alguns vícios, pra manutenção da vida. Seja uma quantidade diária de café tão grande, que ao longo do tempo vire chá, seja a nicotina, ou os metodismos que se adquire conforme passam os anos, até todas as comidas porcarias que se encontra em qualquer biboca de estação de ônibus ou metrô.

 (...)

Microconto - Love of glass

 

I sent you a message, we’re 400 km apart now. 

Isn’t it supposed to be easy to live through the world of glass? So fragile. Writing on a screen all the time, becoming silent of  spoken words and body movements. Trusting a device I barely understand to end the distances, to build affections, to fall in love with you. Creating an abstract space for our existence. The minute you answer I’ll forget it all. 

I’ll just put my cellphone on my chest and wait until it vibrates. I’ll pretend it’s your heart. 

We are together.

 

 

 

 

Microconto - Sonâmbulos

 

Não tinham absolutamente nada em comum, fora o fato de que ambos eram sonâmbulos. Mas nada sobre o que falar, nenhuma conexão, nem sequer gostavam das mesmas comidas. Era um mistério, a sua relação, para eles e para todos os outros.

Carlos, o colega de apartamento dos dois, era o único que podia compreender como aquilo tudo funcionava. Era ele que, do quarto ao lado, ouvia como passavam as noites: tendo conversas completas, algumas não tinham sentido algum - pareciam dois bebês -, e as vezes eram cristalinas e profundas, como se estivessem despertos.

Pela manhã, sempre se sentiam muito cansados, mas cada vez mais íntimos.